Algumas leves considerações acerca dos contos de
fadas,
da magia e da imaginação, ou talvez não.
Excertos adaptados
Maria
Alberta Menéres
Imaginação
Porto,
Ed. Asa, 2003
Talvez se oculte dentro da palavra imaginação, a
própria magia. Mais do que magia: a imagem recuperada ou inventada. Porque no
universo da imaginação há estranhos e ignorados caminhos que levam a terras
sonhadas e terras reais.
Onde podemos dizer que começa realmente a fantasia
e acaba a realidade? Que memória nos atraiçoa? Que esperança nos desmente? Hoje
em dia sabemos como são fundamentais para o crescimento das crianças as
histórias de fadas, esses enredos onde a realidade e a fantasia convergem para
um ponto de encontro e de compreensão – talvez para a constatação de que o bom
e o mau, o feio e o bonito, são nomes de seres ou de objetos ou de situações
vivendo lado a lado, inevitavelmente.
Diz Bruno Bettelheim que o conto de fadas tem um efeito terapêutico na medida em que a criança
encontra uma solução para as suas dúvidas através da contemplação do que a
história parece implicar acerca dos seus conflitos pessoais nesse momento da
vida.
O conto de fadas não informa sobre questões do
mundo exterior, mas sim sobre processos interiores que ocorrem no âmago do
sentir e do pensar.
E as crianças entendem bem a linguagem dos símbolos
dos contos. São elas que inventam no seu dia-a-dia o jogo do “faz de conta” e
tantos outros que as divertem e distraem em tempos vividos entre a imaginação e
a realidade.
São elas que necessitam de contrapontos para situarem
a sua própria vivência e o seu equilíbrio. Talvez por isso não se deva
“explicar” à criança o sentido dos contos de fadas. As imagens e as ações são
“as palavras explicativas” dos contos de fadas.
Quem não se lembra da aflição que sentiu ao ouvir
contar que, “de repente, a menina se viu perdida na floresta”? A criança que
escuta atentamente a história logo se sente e imagina também perdida naquela
mesma floresta imensa e desconhecida.
Quem conta a história vê-se envolvido em todo este
processo. Um adulto que goste de contar histórias não escapa ao seu próprio
fascínio e descobre a cada momento, a cada pausa, o efeito que
as suas palavras e a sua expressão provocam nele mesmo e na criança que ouve,
de olhos maravilhados.
As fadas dos contos podem ser fadas boas ou fadas
más.
A fada é sempre, para qualquer criança, uma certa
imagem da sua própria mãe. Em primeira análise, porque é ela quem a acorda de
manhã, lhe dá de comer e de beber, a veste e a embala. Mas esta “fada” que a
criança pressente na sua mãe, nem sempre lhe aparece com cara radiante! Quando
a criança se porta mal, a mãe zanga-se com ela. E na ansiedade da vida de todos
os dias, quantas vezes a mãe, cansada e desiludida, não se zanga com ela um
pouco injustamente!
A criança revolta-se. E quando se é criança,
qualquer pequena revolta pode ser profundamente violenta. A mãe pode aparecer
de repente como a fada má. Fada má e fada boa ao mesmo tempo podem ser imagens
projetadas.
Diz ainda Bettelheim que a divisão de uma pessoa em
duas, a fim de manter a boa imagem inalterada, surge a muitas crianças como
solução para um conjunto de relações demasiado difíceis de digerir ou
compreender.
Quando uma criança se irrita com a
mãe que ela adora, sabendo muito bem que não deveria irritar-se, está sem o
saber a transformá-la em fada má ou em bruxa, ao mesmo tempo que preserva, no
seu íntimo, a imagem da sua mãe inteiramente boa ou fada benfazeja. A fantasia
da bruxa serviu-lhe para escoar toda a sensação de raiva que sentia, e para
deixar liberta a imagem da mãe.
A criança, aliás, “divide” as pessoas que a rodeiam
em boas e em más. “Divide-se” a ela própria, quando não se assume como culpada
de coisas que fez e que a desgostam: chega a afirmar que não foi ela quem fez
isto ou aquilo (que realmente fez).
É a preservação do lado bom contra o lado mau. A
fada má, a bruxa, a madrasta das histórias de fadas, são tão necessárias como a
fada boa, o pai compreensivo, a mãe adorada, o príncipe encantado. Os contos de
fadas garantem à criança que as dificuldades podem ser vencidas, as florestas
atravessadas, os caminhos de espinhos desbravados e os perigos mudados, por
mais pequeno e insignificante que seja quem pretende vencer na vida. E a
criança, desprotegida por natureza, sente que também ela pode ser capaz de vencer
os seus secretos medos, as suas evidentes ignorâncias.
Assim, aprende a aceitar melhor as
pequeninas desilusões que vai encontrando no seu dia-a-dia, pois sabe que, à
semelhança do que acontece nos contos, os seus esforços por se tornar melhor
hão-de ter um dia a desejada recompensa. No seu íntimo, ela entende muito bem que
as histórias maravilhosas são irreais – mas não as aceita como falsas, na
medida em que descrevem, de um modo imaginário e simbólico, os passos do seu
crescimento.
Num mundo já de si perfeitamente
antagônico, ela intuitivamente “divide” tudo em bom e mau, para assim encontrar
o seu equilíbrio.
E, no entanto, quantas vezes se inquieta: porque será,
ela própria, obediente e teimosa, boa e má, valente e medrosa, uma contradição
viva?
Através de imagens simples e diretas,
os contos de fadas, com toda a sua imaginação, ajudam a criança a destrinçar os
seus próprios sentimentos complicados, ambivalentes, de modo a desviar cada
qual para o seu lugar, evitando as confusões. O conto de fadas sugere não só o isolamento e a separação dos aspectos
disparatados e confusos da experiência da criança em coisas ou situações antagónicas,
como também projeta estes em figuras diferentes, conclui Bettelheim.
Para quem escreve, assim como para
quem lê para crianças, é essencial nunca escrever ou contar por contar. São de
exigir os conflitos, as confrontações, as aventuras – ou seja: sentido e ação.
Afinal, o que faz parte da própria vida.
É para nós um desafio escrever as novas histórias
destes novos tempos, em que a varinha mágica pode ser muito simplesmente um
interruptor de luz; a cabana da floresta; uma tenda de campismo; um cavalo
alado; o mais recente foguetão espacial...
Por detrás da imaginação, quantas
vezes escondida, está sempre a vontade de criar. O conhecimento dessa vontade
não é de hoje, mas de há muito, muito tempo.
Para Platão, ela
nasceria do poder de um deus ou de um demônio.
Ele chegou a falar de inspiração. Aristóteles e Horácio
embrenharam-se pelos caminhos do estudo
da poesia e da escrita apaixonada. Os antigos também invocavam as musas,
essas misteriosas e invisíveis companheiras dos escritores e dos artistas em
geral.
A tradição sempre acreditou que,
espreitando sobre o ombro de quem escrevia, estava “uma outra vontade” que não
a de quem exercia o ativo ofício de escrever. Para os românticos, essa outra
vontade era evidentemente a própria inspiração. Para Freud, ela morava no inconsciente
de cada um. Para os surrealistas, ela existia no próprio ato de escrever e era provocada
por ele mesmo. Vontade, imaginação e criação conjugam-se para que, em cada
época, se consiga extrair do mundo a essência dessa mesma época.